Somos avisados antes de morrer. Pelo menos quando se morre de doença. Não estou contando isso porque alguém me contou. Eu vi. E vi mais.
Aliás, ouvi. Da boca do velho Marciano Prata.
Pediu, falando com certa dificuldade, para o deixarem a sós comigo no quarto. Relatou detalhes e nomes que não tinham nenhuma relação direta com o que de fato desejava que eu soubesse de qualquer jeito. Queria confessar o que guardava há seis décadas. Mais do que se confessar.
Tinha então quinze anos. Curioso incorrigível, viciara-se em espiar por fechaduras e janelas abertas, chegando inclusive a desenvolver a habilidade de escutar através de portas e paredes. Contou-me que o artifício do copo não era mito, de fato funcionava. E foi por meio desse ardil que ouviu o que ouviu em certo 20 de agosto, Dia do Vizinho, tradicionalmente celebrado na casa do notável psiquiatra P.B., homem reconhecidamente taciturno e aéreo, porém casado com mulher tagarela e sociável, a verdadeira responsável pelas festas organizadas em sua propriedade; esta, por sua vez, sendo de boa extensão e situada na Rua Ana Branca, atualmente uma galeria comercial.
Eu disse que ele falou mais do que precisava. Talvez porque, como o Alzheimer o impedia de lembrar se o que bebeu há quinze minutos era água ou chá, fazia questão de compensar deixando claro que recordava em minúcias aquele acontecimento de seis décadas. Talvez, ainda, quisesse me impressionar com a abundância de detalhes, no intuito de que eu nem cogitasse duvidar da veracidade de sua revelação. Mas tinha que ir adiante. Não tinha muito tempo. Ele sabia.
Os dois filhos do casal B., L. e L., já não residiam com os pais.
O primogênito era casado, engenheiro, a beirar os quarenta. Já o caçula morava na capital por causa da universidade, e estava comprometido seriamente com M.C.V.N.S., moça loura, alta e caucasiana. Naquele dia, apenas devido à famigerada paella valenciana de Guadalupe – a cozinheira espanhola do casal B. – os filhos e suas respectivas senhoras encontravam-se em domicílio paterno para a dita comemoração.
Assim como a maioria dos homens ali presentes, Marciano Prata me confessou que também não conseguiu desviar os olhos de M.C.V.N.S. Sucedeu que, a certa hora da noite, esta se retirou para o interior da casa, e a ânsia passional de Marciano Prata determinou que uma eternidade se passara. Decidiu por percorrer todos os cômodos da ampla residência, estacando na porta fechada da biblioteca.
Biblioteca do Casal B. 1939:
- O que é isso?
- Então você não sabe?
- Não seja bobo...
- Ah, isso. É um caleidoscópio.
- Como funciona?
- Dá aqui. Deixa eu ver. Hum... Não funciona. Está quebrado. Vem cá, vão dar por nossa falta.
- Olha! Uma máquina fotográfica!..
- ...quebrada.
- Por que guardar tantas coisas quebradas e velhas?
- E por que não?
- Ah, não estou te dando muita atenção, né? Desculpa... O que é isso? Vai fumar?
- Não.
- E por que acendeu esse fósforo?
- Gosto de sentir o cheiro do fogo.
Hospital Samaritano, 1999:
- Um piromaníaco. E depois??
- Junte o papel dos livros e fotografias ampliadas com o celulóide dos negativos e fogo. O que terás? Fogo. Depois veio o fogo...
- Então...
- Sim.
E me pediu para chamar o pastor.